Quem irá falar com vocês, sobre experiência de descobrir que tem uma filha com síndrome de down e sobre o aprendizado que essa descoberta lhe proporcionou, é a Lívia Scannavino, mãe da Juliana, uma menina especial com quem eu tenho o prazer de conviver.
Esta é a Juliana, ou Jú para os amigos.
JULIANA, UMA HISTÓRIA DE AMOR (texto escrito em 1983)
Juliana nasceu e, desde o instante em que a vi, na sala de parto, notei que havia algo diferente com ela. Aquele sentimento eufórico que sempre esperei ter no momento em que tivesse uma filha (eu já tinha um menino), jamais senti, pois desde os primeiros minutos a preocupação tomou conta de mim. Assim que voltei para o quarto, comentei com minha mãe e meu marido sobre as minhas suspeitas e ambos a acharam sem fundamento. Então, eu tentava esquecer tudo que me afligia e curtir o fato de ter tido a menininha que sempre sonhara.
Eu buscava me convencer, eu repetia: “Que besteira a minha em pensar tudo isso. O normal é ter um filho normal. Todos tinham. Eu mesma já tinha tido um mais que normal. Porque a Juliana não seria também?. E assim seguia fazendo o jogo dos que me visitavam e, às vezes, me deixava levar pela euforia daqueles que nem em sonho poderiam imaginar o que eu estava realmente sentindo.
Mas o esquecimento das minhas suspeitas durava pouco, pois a cada quatro horas, Juliana vinha pra mamar. E tudo recomeçava em minha cabeça. Até que, por fim, o jogo foi aberto e tudo veio à tona. Depois da conversa com o pediatra eu queria morrer.
Não podia ser verdade que aquilo estivesse acontecendo comigo! A realidade chegou tão inesperada que me derrubou. E do degrau em que me encontrava na escada da vida, caí e só parei porque não havia mais o que descer. À minha frente não existia perspectiva alguma, já que o plano vertical não fazia mais parte do meu mundo.
Como era possível que Deus, em toda sua bondade, fizesse isso comigo? Por quê? E assim uma onda de “por quês” inundou os meus dias.
No início, só interrogações, mas com o passar do tempo, consegui responder às minhas próprias perguntas e em cada resposta eu reencontrava um pouco mais de mim mesma e me tornava um pouco mais forte para enfrentar aquele obstáculo.
As perguntas se seguiam: Por que Deus gerou um filho tão perfeito e me mandava um imperfeito? E logo chegava a resposta: Cristo foi perfeito para desempenhar o papel que só cabia a Ele viver. E a Juliana é perfeita para o pedaço da história que lhe cabe.
Por que minha cruz era tão mais pesada que a dos outros? Como poderia dizer isto se jamais havia carregado a cruz de alguém? E como saber se era pesada demais para mim, se não havia sequer tentado carregá-la?
Por que não aceitar uma pessoa que nasce com uma anormalidade qualquer, quando somos tão vulneráveis a tudo, quando podemos contrair uma doença tal que nos deixe, quem sabe, mais limitados que aquele que relutamos em aceitar? Em cada resposta eu reencontrava um pouco mais de mim mesma e me tornava um pouco mais forte para enfrentar aquele obstáculo.
Por que dizer que a Juliana é imperfeita, quando ela se aproxima muito mais do que nós, das expectativas de Deus? Por que confundir imperfeição com anormalidade, palavras tão distintas? Por que as pessoas têm que ser como queremos? Por que não conseguimos respeitar o indivíduo que existe em cada corpo, independente de sua capacidade intelectual ou produtiva? Por que só amamos filhos que temos como perfeitos quando Deus nos tem a todos como filhos e nos ama como tal, apesar de sermos imperfeitos? E assim por diante.
Quantas perguntas eu me fiz... E, pior do que a ansiedade que havia em encontrar respostas para minhas perguntas, era o que eu descobria de mim mesma neste louco processo: Como eu era pequena! E quanto havia ainda para crescer! Mas eu queria crescer.
O desafio estava lançado. Era preciso definir para mim o que eu realmente sentia em meio a tanta confusão. É desagradável saber que precisamos fabricar razões e motivos para amar alguém, quando este sentimento deveria ser tão natural e espontâneo. E eu amava minha filha.
Por que então lançava mão destes expedientes? O que eu realmente sentia por ela? Eu não conseguia compreender. Mas o tempo se incumbia de trazer as definições e, aos poucos, Juliana deixava de ser imposição para voltar a ser uma opção de vida.
Eu lia muito e, à medida que dominava o assunto “mongolismo”, mais fácil ficava de aceitar a idéia de ter uma filha excepcional. Pessoa anormal, mas perfeita. Diferente, mas não doente. E ser diferente não é um grande problema!
Quando descobri que não havia um grande problema em minha vida, aceitei de coração esse fato. Senti que estava de volta àquele degrau de onde havia caído. Estava novamente pronta para continuar.
Com a aceitação, todo aquele questionamento, a necessidade de encontrar respostas e tudo o mais de inseguro se acabou. E o que senti de gratificante foi a certeza de amar minha filha, com todas as minhas forças, porque eu a aceitava, agora, como ela é.
O verdadeiro amor só existe com a aceitação plena. E só agora posso dizer que co-nheço e sinto o que é amar de verdade. Hoje, por ter certeza deste amor por ela, não tenho medo do que penso e sinto.
Por ter descoberto e aceitado a minha pequenez como gente, enfrento as minhas fraquezas e, por causa da Juliana, torno-me, em cada fraqueza, mais forte. Ao aprender o que significa a palavra entusiasmo (in theos asmo - “com Deus na alma”), sei bem o que reconquistei e jamais vou querer perder isto.
Espero jamais dizer não às propostas da vida e tenho certeza de que quando dizemos sim e aceitamos o que surge não faltam mãos amigas a nos sustentar e apoiar.
Termino aqui este meu depoimento tendo como lema para meu caminho futuro e desconhecido algumas palavras que recebi: “O grande estímulo da vida é saber que existem pessoas que acreditam em nós e esperam da gente grandes coisas”.
Dedico estas linhas a quatro pessoas: à Maria, minha querida secretária e “pau pra toda obra”; ao meu marido, que nunca deixou de ser o segundo prato da balança que não chegou a se desequilibrar; à minha mãe que, sempre a meu lado, soube falar quando eu precisava escutar e soube se calar quando eu precisava sentir; e à minha sogra, que sempre transmitiu a sensação de me achar capaz de grandes coisas.
Lívia M.S. de Carvalho
Nenhum comentário:
Postar um comentário